O ônibus vermelho de dois andares vacila e, no que parece um piscar de olhos, acaba vencido pela curva do acesso da RS-471 à BR-392, em Canguçu, antes de despencar na vasta escuridão de um barranco de 40 metros, às 23h23 daquele sombrio 15 de janeiro de 2009. Acordado, entre os doloridos solavancos do coletivo que transportava a delegação do Brasil de Pelotas, o então volante Odair Hellmann materializa uma frase bem vívida em mente:
? Eu não vou morrer. Eu não vou morrer. Eu não vou morrer.
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O pensamento positivo naquela trágica noite foi o que o transformou em sobrevivente aos 32 anos de idade. Um sobrevivente que carrega até hoje a dor da perda dos amigos Claudio Millar, Régis e Giovane Guimarães, vítimas da maior tragédia do futebol gaúcho. Mas Odair se ergueu ainda mais forte daquele barranco, como o próprio diz. Com a certeza de que a sinuosa estrada da vida, mesmo tortuosa, também é capaz de fazer cintilar o brilho da felicidade. Como o do do inédito ouro olímpico, conquistado como auxiliar de Rogério Micale na Seleção.
? O acidente foi o momento da minha vida que mudou drasticamente. Eu era atleta e tive que encerrar minha carreira para começar uma nova etapa, com 32 para 33 anos. Você não se prepara para isso. Foi uma tragédia. Temos que saber viver em todas as coisas que a vida nos apresenta. O ouro representa muito para a minha carreira. Era uma conquista que o futebol brasileiro, que é o maior vencedor, não tinha ainda. Então, com certeza, não só para mim, mas para todos que estavam lá, essa medalha representa muito ? afirma o auxiliar campeão olímpico e da comissão permanente do Inter.
Aquela trágica noite abreviou a carreira de Odair como atleta, após seis meses de uma lesão lombar que o impedia até de se locomover. Mas não demoveu o futebol de suas veias. O ex-volante foi acolhido pelo Inter como analista das categorias de base e cavocou seu espaço até se consolidar como auxiliar fixo do clube.
O incansável “Papito”, como é carinhosamente chamado no vestiário colorado, recebeu a reportagem do GloboEsporte.com no CT do Parque Gigante após o treino de sexta-feira. Em 15 minutos de conversa, Odair falou sobre a experiência na Seleção e o emblemático ouro olímpico, além do momento delicado vivenciado pelo Inter. Como integrante da comissão técnica, o auxiliar não recebeu, de fato, a histórica medalha. Mas garante que irá mandar fazer uma no mesmo molde da dos comandados Dourado e William. Para eternizar as glórias. Sem esquecer das agruras.
> Confira os trechos da entrevista com Odair Hellmann:
GloboEsporte.com: Qual o peso de uma conquista desse tamanho para você, já nos primeiros anos da carreira como auxiliar?
Odair Hellmann: Isso representa muito para a minha carreira pessoal. Representa para o futebol brasileiro. Era uma conquista que o futebol brasileiro, que é o maior vencedor, não tinha ainda. Então, com certeza, não só para mim, mas para todos que estavam lá, essa medalha representa muito.
Imagino que tenha um significado ainda mais especial por tudo o que você passou na vida. A conquista chega para coroar sua trajetória, seis anos após aquela tragédia…
Com certeza. A vida é feita de altos e baixos. É feita de acontecimentos ruins e bons. O acidente foi o momento da minha vida que mudou drasticamente. Eu era atleta e tive que encerrar minha carreira para começar uma nova etapa da minha vida, com 32 para 33 anos. Você não se prepara para isso. Foi uma tragédia. Dali, seis meses em que fiquei machucado, refleti muito, resolvi parar e começar uma nova etapa na minha carreira. Foi em outubro de 2009, quando iniciei nas avaliações técnicas da categoria de base do Inter… De lá, até esse momento, da oportunidade de participar da Olimpíada e de conseguir a medalha de ouro.
Você também esteve presente, numa emergência, na derrota por 5 a 0 no Gre-Nal. Essa medalha encerra, por assim dizer, essa marca em sua carreira?
Não é uma questão de encerrar. A vida é feita de altos e baixos, de acertos e de erros. Foi uma etapa que aconteceu. Ninguém aqui no Inter gostaria que tivesse acontecido. O importante é que dois, três dias depois, conseguimos a vitória sobre o Fluminense, no Beira-Rio. A medalha é a parte da felicidade, da alegria. Lá é a parte da tristeza, ainda mais com o placar daquele jeito. Você tem que ter equilíbrio para saber que é bom profissional independente se ganha ou não. Você não pode se sentir o herói porque ganha, e depois se sentir o bandido porque perde. Tem que se preparar, se qualificar para estar preparado para todos os momentos. Se eu estive, é porque estou preparado para suportar tanto a derrota quanto para receber a glória da vitória.
Até porque você é sobrevivente de um trauma muito mais difícil.
Aquele apagar de luz ali… Para mim, a sensação é essa. Apaga a luz e por dois segundos ou você vai ou você volta. E eu estou aqui para conversar contigo, para contar essas histórias da vitória, da felicidade, da honra, do momento histórico de ganhar essa medalha de ouro e também essa etapa que foi difícil, mas que faz parte de uma vida, de uma carreira de quem está no futebol. Estou preparado para todas as situações, estou equilibrado em todas as situações. É isso que busco. Equilíbrio, é qualificação. É ser um profissional preparado para todos esses momentos.
Apagar de luzes… Foi isso que você sentiu?
É um segundo, dois segundos. É como se você fosse para a sua casa, acende e apaga a luz. Era 23h20, não sei a que horas foi o acidente. Se fosse às 23h22 e dois segundos, 23h22 e três segundos, apagou. E acaba. A gente precisa entender que a gente só tem essa (vida). Temos que saber viver em todas as coisas que a vida nos apresenta. Nas vitórias, nas derrotas, no acidente… E aí, a gente vai crescendo como ser humano.
Você achou que ia morrer em algum momento?
Não deu nem tempo de me perguntar se ia morrer, ou não. É tudo tão rápido. Eu só me lembro que não desmaiei, eu não apaguei. Eu fiquei tomando as pancadas todas como se fosse um liquidificador. Eu só me lembro que eu dizia para mim mesmo “eu não vou morrer, eu não vou morrer, eu não vou morrer” o tempo todo em que aquele ônibus virou. É uma força positiva que naquele momento me surgiu e que felizmente, estou aqui. Mas perdi três grandes amigos. É o que mais dói. Gostaria que todos estivessem aqui. Que, se por acaso, tivesse acontecido esse acidente, que todos sobrevivessem, ninguém tivesse machucado. Mas infelizmente perdemos três grandes amigos, outros se machucaram. É uma tragédia sem cura. Vai ficar marcada para o resto da minha vida e para o resto da vida de todas as pessoas que participaram daquilo.
Essa positividade foi o que te ergueu e te acompanha?
Eu sou um cara bastante positivo. Já era antes. Depois que levantei daquele barranco, vim mais forte, mais alegre ainda. E tudo isso não foi só agora nessa conquista. Isso, eu coloco em prática todos os dias da minha vida. Se eu já era um cara feliz, realizado, de bem com a vida… Quando eu levantei daquele barranco, eu voltei mais forte ainda.
Você esperava ser chamado para integrar a comissão da Seleção?
Esperar que fosse ser chamado, não. Tinha uma comissão. Estava tudo dentro de uma normalidade. Houve uma mudança. O Micale assumiu como treinador e fez o convite. Fiquei muito feliz, muito honrado.
É muito diferente participar do ambiente de uma Seleção?
Eles (jogadores) chegaram em alguns estágios diferentes físicos. Alguns estavam de férias, outros estavam jogando o Brasileiro. São jogadores muito inteligentes. De muita qualidade. E que rapidamente, quando vai começando a melhorar sua parte física, se modulando igualmente, a qualidade vai sobressaindo. O momento de treinamentos foi muito bem planejado, para que se crescesse como equipe, porque a gente sabia que nos primeiros jogos, a gente ia ter mais dificuldade.
Essa dificuldade se fez mais presente contra o Iraque… Como foi superar aquele momento?
Foi manter a convicção, manter tudo aquilo que vinha sendo feito no dia a dia e passar para todos que estavam naquele processo. Acreditar um no outro, ter convicção de que iríamos conseguir os resultados e fazer uma grande competição. Nós não podíamos ter dúvida. Se o externo estava com dúvida, não podíamos deixar que a dúvida entrasse lá. A gente não deixou. A gente consolidou uma situação de positividade, de convicção, manteve as ideias e acabou com a vitória sobre a Dinamarca. E o time foi evoluindo jogo a jogo.
Como foi conviver com algumas estrelas, caso do Neymar?
Enriquece muito, porque você aprende com todos eles. São jogadores experientes, que trabalham fora do Brasil. Mas você enriquece não só com esses jogadores, mas com o Rodrigo, com o William, com o Wallace, com o Luan… Eu teria que citar os 18. É um aprendizado com cada um, no dia a dia, no treinamento, no pós-treinamento, lá dentro dos hotéis. É um crescimento pessoal e profissional. E eu fico muito feliz comigo.
Essa bagagem te dá estofo para pensar em voos maiores?
Sou funcionário do Inter. Sou auxiliar da comissão permanente. Tenho aprendido e crescido muito com as experiências de todos os treinadores. Estou com o Celso Roth, um grande treinador. Sou novo, tenho 39 anos. Vou estar cada vez mais qualificado com a oportunidade de trabalhar com todos esses profissionais. Lógico, todos os dias as coisas podem acontecer e quero estar pronto para essa possibilidade.
Você acompanhou o Inter no período com a Seleção?
Foi difícil de acompanhar. Os jogos eram no mesmo horário dos treinos, então procurávamos informações, tentávamos assistir, eu, o Rodrigo e o William. Estávamos sempre acompanhando e torcendo muito para as coisas acontecerem da melhor maneira possível, e eu tenho certeza que elas vão acontecer para sairmos dessa situação.
Nesse período fora, houve uma troca de treinador. Como você recebeu essa mudança?
O Roth é um grande treinador. Fui jogador do Roth. Foi ele quem me subiu do juvenil para o júnior e do júnior para o profissional. Então eu o conheço muito bem, sei de toda a capacidade dele. O Beto Ferreira, seu auxiliar. São grandes profissionais. O Inter está bem servido de treinador e de auxiliar. O Celso vai ajudar o Inter muito.
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